Um Breve Ensaio Sobre o Vernáculo Clássico

Jota Guedes
9 min readDec 12, 2020

por Jota Guedes

Neste brevíssimo ensaio, vou tentar esclarecer o que eu entendo por vernáculo clássico. Ao final, espero deixar claro o que de valioso acabamos deixando para trás quando toda a sabedoria embutida nos desenhos de antigos mestres foi substituída por uma espécie de apologia das empenas cegas.

A maior parte do raciocínio aqui exposto foi inspirado pelo brilhante livro de ensaios do filósofo inglês Roger Scruton, cujo título é The Classical Vernacular. Architectural Principles in an Age of Nihilism [1].

Quando me refiro à arquitetura vernacular, grosso modo, tenho em mente a vertente popular da arquitetura, daquela refletida nas inúmeras soluções anônimas baseadas em tentativa e erro. Dos seus produtos bem sucedidos emergem os arranjos de formas duradouras que podem ser herdadas por gerações, constituindo assim uma tradição; um estilo; uma linguagem compartilhada. Devido à natureza do assunto, sua classificação tende a abarcar um contingente muito amplo, cabendo desde a cultura dos assentamentos humanos primitivos até, por exemplo, o estilo Georgiano, derivado diretamente das Ordens Clássicas. De modo nenhum quero conduzir ao horizonte restrito da arquitetura sem arquitetos. O que deve ficar claro é que o fenômeno não é estanque — construtores anônimos e espíritos talentosos da arquitetura costumam inspirar-se mutuamente.

O desenvolvimento das residências Georgianas deu origem a inúmeras soluções com as quais uma miríade de modestos construtores anônimos puderam improvisar, nos fornecendo um belíssimo exemplo de modelos vernaculares inspirados na arquitetura clássica que podem ser difundidos e adotados com grande versatilidade.

Outro exemplo de grande inspiração é a obra do arquiteto Americano Scott Merrill. Na sua prancheta a linguagem vernacular ganha um brilho especial, inteiramente renovado pelo poder evocativo que apenas as feições da arquitetura clássica são capazes de transmitir. A síntese encontrada na Capela em Seaside é de uma sutileza tão rara que sugere um cuidadoso e disciplinado trato com o desenho de que só um olhar educado tem a capacidade de cultivar. Sua homenagem à construção rudimentar é tão imaginativa que nos surpreendemos com o fato de que entre suas maiores inspirações estão os silos (grain elevators) e os modestos paióis de milho (corn cribs) — sim, estou falando daquelas armações precárias de madeira utilizadas por pequenos produtores rurais para proteger sua colheita.

Capela em Seaside. Arquiteto Scott Merrill. [2]

Por essas e outras razões, que não cabem neste ensaio, acredito que a linguagem clássica da arquitetura sempre será uma fonte inesgotável de recursos.

Ilustração baseada num projeto para um monumento fúnebre do final do séc. XIX. Neste exemplo, fica mais que evidente como a linguagem clássica está aberta a constante reinterpretação. A sua versatilidade intrínseca deu origem a uma infinidade de belos edifícios das mais variadas tipologias [3].

Por outro lado, a apologia das empenas cegas, de que falei antes, talvez seja um dos grandes legados da Era Moderna. Diferentes dos antigos construtores, os modernistas tencionaram uma ruptura radical com a tradição. Passados quase cem anos desde que Le Corbusier formulou Os 5 pontos de uma nova arquitetura [4], a prometida liberdade no trato das fachadas deu lugar ao reino da arbitrariedade; encurralou os arquitetos numa série de dilemas, entre os quais o mais constrangedor é a sua irremediável dificuldade de lidar com aberturas numa fachada. A partir de uma conversa informal com um professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia ficou claro que o problema é tão sério quanto eu imaginava. Disse ele:

A nota mais destoante foi em sala de aula. Quando notei em colegas — e em mim também — que abrir uma janela era um problema compositivo tão intenso, tão difícil, que era preferível evitá-la[…]. Seria como se problematizássemos dar um passo no ato de andar. Muito da Arquitetura Moderna é a inversão do óbvio. Em muitos casos, abre horizontes interessantes. Porém, não raro é um contrassenso monumental. A exemplo dos tetos planos pelos tetos planos. Das empenas pelas empenas. Das janelas de esquina. Da negação da estrutura perimetral. Acaba sendo como um jogo lógico: se sempre fizemos assim, porque não fazemos o oposto?[…].

Uma das características da Era Moderna é uma cisão crescente entre os valores estéticos da elite e do restante da sociedade. Vai-se abrindo cada vez mais, até ser um abismo. As vanguardas artísticas tencionam esse abismo a um máximo. Na medida em que as instituições de ensino foram tomadas pelas vanguardas, se sacramentou esse abismo. E sequer significa mais uma elite em termos de poder ou dinheiro, mas em termos do que essa mesma elite define, para si mesmo, como “cultura”.

Em arquitetura, isso leva a situações entre o paradoxal e o ridículo. O Ecletismo foi banido como anátema das universidades. E somente há poucos anos voltou a ter algum valor entre os arquitetos. Nesse meio tempo, nunca deixou de ser um parâmetro de Arte para a maioria da população.

Uma das coisas mais curiosas na trajetória de Le Corbusier foi como ele reinventou as janelas. E passou a vida inteira criando mecanismos dele, com nomes sagazes, que apenas recuperavam, sob outra roupagem, elementos da Arquitetura Tradicional, para consertar os efeitos daninhos de cada invenção sua.

Notamos, por óbvio, que a arquitetura moderna se estabeleceu, em larga medida, ao varrer os ornamentos da face urbana pelo simples jogo lógico dos contrastes — da velha rivalidade entre o despojado e o requintado, por assim dizer. Da comparação entre o desenho moderno e o clássico é possível tomar algumas notas bastante sugestivas. Arrisco defender que o desenho clássico tem um lugar especial no coração humano. É lamentável que uma quantia expressiva de arquitetos tenha perdido o contato com os seus aspectos mais comedidos e elementares. Aqui pretendo recuperar um tanto disso.

Depois de algum tempo revirando manuais clássicos de desenho arquitetônico percebi a enorme quantidade de riquezas que foram abandonadas, descartadas por sua suposta obsolescência. Uma das virtudes do desenho clássico — que é o que quero explorar aqui — é a possibilidade de fazer emergir a beleza por meio de operações simples e intuitivas acessíveis a qualquer pessoa. Os recursos proporcionados pelas molduras (frisos e afins) são de inteligibilidade imediata e fazem parte do que podemos chamar de fenomenologia das transições — um assunto interessantíssimo que merece ser tratado com especial cuidado em outro momento.

Para ilustrar o meu ponto de vista partirei de um projeto do arquiteto Álvaro Siza. A imagem abaixo mostra uma seção transversal da sua pequena capela em Barão de São João, na região do Algarve.

Não fosse o desenho desajeitado de sua cruz de madeira julgaríamos estar diante de uma sala de banho ou de algum ambiente cuja assepsia se faz com rigor diário. Um dos resultados do seu despojo reflete-se na quantidade de artigos publicados que ultrapassam, com muita dificuldade, pouco mais de dois parágrafos (não há muito o que dizer sobre as empenas cegas).

Uma das mais notáveis contribuições do antigo desenhista — que certamente não é o caso de Siza — foi o seu enorme interesse em manejar com maestria as cadências harmoniosas dadas pelo jogo de luz e sombra numa fachada — incluída a pequena escala, mais aclimatada ao engajamento humano. No entanto, a pilha verborrágica de manifestos que herdamos do modernismo transforma a tarefa de recuperar a virtuosa geometria das sombras numa empreitada quase impossível.

Uma página preciosa de um manual clássico para o desenho de sombras projetadas [5]

Voltemos ao mais elementar. Julgo que o purismo de Siza — numa fatia considerável dos seus projetos — não suporta o escrutínio parcimonioso do qual pretendemos extrair as lições mais afetuosas à sensibilidade humana— daquelas relacionados à beleza no seu sentido mais intuitivo e imediato. Siza, ao lidar com a pura geometria, parece entender a arquitetura como um jogo de proporções cuja a dosagem adequada é capaz de alçar algum tipo de harmonia. Sendo assim, não creio que ele esteja totalmente errado, mas parece-me difícil sustentar que na vida cotidiana isso aconteça de maneira tão evidente.

Tomemos o seguinte exemplo: se ficássemos encurralados pela necessidade inexorável de abrirmos vãos desajeitados de janelas em uma fachada, teríamos o impulso de negá-las a qualquer custo — substituindo-as por sheds ou grandes painéis envidraçados, por exemplo. Porém, o desenho clássico nos ensina que há maneiras mais sutis de contornar esses dilemas.

Observe na imagem abaixo como um fato arquitetônico se impôs ao arquiteto e como uma linguagem articulada lhe permite fácil adaptação: o vão de passagem da direita (mais largo) é imposto pelo alinhamento da colunata do pátio ao fundo. Não encontramos razão para acreditar que a beleza rudimentar dessa solução seja alçada por um jogo dosado de proporções, pelo contrário, as proporções são redimensionadas sob a luz dos detalhes que imprimem um sentido de unidade.

Escolas Menores da Universidade de Salamanca [6]

Ocorre que a linguagem clássica da arquitetura tem um aspecto dos mais significativos: ela nos abre caminhos para uma gama infinita de possibilidades compositivas — mesmo para o arquiteto que não domina com maestria algum sistema de proporções.

Talvez Álvaro Siza conheça um sistema sofisticado de regulações matemáticas que julgue lhe dar meios para eliminar o máximo de arbitrariedades das suas decisões. O problema é que quase sempre lidamos com inexorabilidades. O que me parece evidente é que o desenho clássico— e tudo o mais que reverbera em seu nome —permite uma certa inépcia quanto às exigências da geometria e da proporção matemática, abrindo caminho para redescobrirmos a beleza em meio a uma selva de restrições. Por meio desta sequência de imagens é possível notar com mais clareza esse argumento:

São três registros distintos: em primeiro lugar temos a inexorabilidade das aberturas sem proporção e o desconforto causado pela sensação de arbitrariedade; passamos então pelas soluções triviais do vernáculo moderno atual; por fim, temos a solução articulada dada pelo uso de molduras, frisos, cornijas, etc.. Com efeito, a sucessiva aplicação de elementos torna visível como os detalhes clássicos requalificam as proporções, absorvendo de uma maneira surpreendente os ruídos causados pela aparente incoerência das aberturas.

Esse pequeno estudo de fachadas causou um impacto profundo na minha maneira de olhar, fazendo-me notar, ao caminhar por bairros antigos, as inúmeras maneiras com as quais projetistas anônimos articulavam miudezas nas fachadas mais modestas, que antes passavam-me despercebidas. E mais: revigorou o meu olhar em direção aos grandes mestres da arquitetura, imprimindo um novo brilho nas suas obras, fazendo-me reconhecer que o intento de muitos deles, não raro, coincidia com um senso apurado de permanência; daquela musicalidade das formas que ressoam na alma como ecos da Eternidade. Esse jogo milagroso tornou-se de tal maneira enraizado, que, desde então, é costume meu, irresistível, imaginar o espaço purista como que rematado por molduras e frisos.

Coluna Jônica. Nas palavras de E. H. Gombrich, uma fonte de “infinita graça e leveza”[6].

Siza que me perdoe a provocação, mas aqui está a razão deste ensaio: por fim, a minha versão da Capela do Monte.

  1. SCRUTON, Roger. The Classical Vernacular: Architecture Principles in an Age of Nihilism, Manchester, 1994. Nas palavras do autor, o vernáculo clássico significa “uma tradição de padrões, adaptados aos usos do construtor comum, e capazes de criar acordo e harmonia nas mais variadas circunstâncias de potencial conflito”.
  2. Vale a pena conferir o seu portfolio online: https://merrillpastor.com/portfolio/
  3. Ricordi di architettura raccolti autografati e pubblicati da una societa di architetti fiorentini (Memórias da arquitetura coletadas, autografadas e publicadas por uma sociedade de arquitetos florentinos). Link de acesso: https://www.bdl.servizirl.it/bdl/bookreader/index.html?path=fe&cdOggetto=5551#page/86/mode/2up
  4. FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Sobre os 5 pontos, Frampton resumiu da seguinte forma: “Para sua expressão, todas as casas dependiam da sintaxe dos ‘cinco pontos’: 1) os pilotis que elevavam a massa acima do solo, 2) a planta livre, obtida mediante a separação entre as colunas estruturais e as paredes que subdividiam o espaço, 3) a fachada livre, o corolário da planta livre no plano vertical, 4) a longa janela corrediça horizontal, ou fenêtre en longueur, e finalmente 5) o jardim de cobertura que supostamente recriava o terreno coberto pela construção da casa”.
  5. LANDRIANI, Paolo. Del Modo Di Tracciare i Contorni Delle Ombre Prodotte Dai Corpi Illuminati Dal Sole Dell’arquitetto Pittore Scenico Paolo Landrini. Nuova Edizione. Milano, Angelo Bietti, 1887.
  6. MACK, Gerstle; GIBSON, Thomas. Architectural Details of Northern and Central Spain: One Hundred and Four Measured Drawings, Fifty Five Photographs. W. Helburn. New York, 1930.
  7. GOMBRICH, Ernest. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.

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