Sobre a exploração de um cadáver

Jota Guedes
4 min readOct 19, 2022

Marielle Franco, e seu motorista, foram assassinados brutalmente. Como sempre, muitos temas se articulam nesse fato, e na sua repercussão e exploração, que constituem outros fatos. O primeiro é que, junto com a tentativa de assassinato — de magnicído — do então candidato favorito na corrida presidencial, Jair Bolsonaro, o assassinato entrou na cena política nacional.

Em termos de importância, há duas claves possíveis. A primeira, óbvia, que um assassinato efetivo é mais grave que a tentativa de um homicídio. A segunda é que um candidato à presidência que despontava na frente é mais importante — pelo cargo, número de eleitores, peso simbólico — que uma vereadora menor em uma grande cidade.

A repercussão do assassinato de Marielle se deu por uma soma de fatores.
Primeiro, por ser o Rio de Janeiro. Um levantamento na época mostrou que era comum o assassinato de vereadores pelo Brasil afora. Mas em cidades menores. Segundo, por ser a vereadora uma candidata da Zona Sul carioca. Ao contrário do que poderia parecer, seu eleitorado não era a do seu entorno geográfico, de sua classe social, de sua pele, etc: era a Zona Sul carioca, Leblon e Ipanema.
Terceiro, e por extensão imediata do segundo: porque seu eleitorado tem acesso forte aos meios de comunicação. Muitos são os grandes meios de comunicação.

Quarto, porque um cadáver era há muito tempo procurado. Isto merece uma explicação. A busca por um mártir, a todo custo, eu chamo de Tática Hörst Wessel. A Esquerda brasileira ensaiou com Amarildo. Ensaiou com o jovem gay Kaique, que depois se revelou ter sido suicídio. Celso Daniel e Toninho do PT seriam nomes perfeitos: políticos de expressão regional, importantes, que foram assassinados com requintes de crueldade. E justamente pela extrema conveniência da exploração do cadáver que o silêncio do PT — e sua operação “abafa” — anuncia o óbvio: queima de arquivo. Ou, ao menos, mandantes que são mais importantes do que os mortos. Depois esse ponto será desenvolvido.

O quinto, desdobramento do quarto, é que Marielle foi o perfeito roteador de discursos: ela permitia que a explicação fosse lançada para qualquer lado. Ela foi assassinada por ser de Esquerda. Por ser negra. Por ser mulher. Por ser pobre. Por ser da periferia. Por lutar contra as milícias.

Evidente que é preciso comiseração com a vítima. O que torna a misericórdia desigual é a exploração do cadáver. Uma parte do público se tornará cada vez mais histérica, hipersensibilizada, com a menção constante, a repetição pavloviana, de Marielle para qualquer situação.

Outra parte se dessensibilizará: não aguentará mais a menção, oportunista na grande maioria das vezes, do seu nome. Eu me situo mais para o segundo caso, e por um motivo incomum: Santiago Maldonado. Maldonado era um tatuador que envolveu-se numa refrega com um grupo terrorista (embora com ações pequenas) chamado Resistência Ancestral Mapuche. Na fuga da polícia, “desapareceu”, em agosto de 2017. Fez-se um alarde imenso nos dias seguintes… cartazes… passeatas… charges #somostodosmaldonado… professores militantes ensinavam sobre a morte de Maldonado pelas mãos do Estado… vinculou-se ao Presidente Maurício Macri… Página 12 (o jornal análogo à Carta Capital, disse que “Macri já tem seu primeiro desaparecido”, sendo “desaparecido” um termo fortíssimo, que designa os milhares de assassinados pelo regime do general Videla, cujos corpos foram subtraídos)… Até que, meses depois, descobriu-se o que ocorrera: atravessando o gélido rio Chubut (águas de degelo), o sujeito, que não sabia nadar, foi pego num perau… encharcado, com roupas e mochila pesando, afogou-se, e o corpo ficou preso entre as algas. Simples assim.

Isso foi 7 meses antes da morte de Marielle Franco. O protocolo de ação aplicado foi o mesmo. Literalmente o mesmo. Difícil se sensibilizar, quando se percebe que é uma “comoção de manual”, seguindo um roteiro prévio.

Outros dois pontos devem ser vistos. Primeiro, o Fundo Marielle Franco. Ele foi criado pela Fundação Ibirapitanga… a Fundação Ford… e a Open Society, de George Soros. Ninguém da Esquerda achou anormal isso.

Segundo, o desfile das Escolas de Samba. Houve homenagem a Marielle Franco. Porém, atualmente as Escolas de Samba não apenas lavam dinheiro do jogo do bicho. Lavam também das milícias. As mesmas que assassinaram a mulher. Tampouco ninguém da Esquerda viu nada de errado nisso. Isso implica em muitas coisas. Uma delas é o total descolamento da realidade e das palavras. Podem milicianos lavar dinheiro, desde que falem bem de Marielle Franco, ou da nossa agenda. O significado concreto, por assim dizer, dado pela realidade, inexiste: as palavras é que existem. Seria como se alguém, espancando uma mulher na rua, em plena luz do dia, aos gritos de “eu te amo! Eu te amo!”, estivesse dando uma demonstração inequívoca de amor, afinal, suas palavras apontam para isso. A outra é o total descolamento com a base material de produção, ou, o esquecimento da lição marxista de análise dos fatos sociais. Marx achava que o foco no conteúdo, como se este fosse estável, eterno, era formalismo pequeno-burguês. O importante era analisar: a) a base material da ação… sua classe social.. sendo esta definida por uma função concreta no modo de produção da sociedade; e b) seus efeitos concretos. A premissa é que a intenção era transparente com o resultado: quem promovia sabia o efeito desejado. No caso, a questão é clara: quem financia o Fundo, usando o nome da assassinada, não foram os proletários, ou coisa que o valha: foi o capital financeiro internacional. E não qualquer um, mas o seu topo. Isso deveria levar à questão óbvia: se a ação é consubstanciada com a intenção, qual a intenção por trás disso? Mas a Esquerda brasileira, tão ignorante quanto histérica, esqueceu das lições de Marx. E mesmo da Esquerda brasileira dos anos 70, que acompanhava de lupa o que a Comissão Trilateral fazia.

Ficamos apenas com a gritaria.

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