O SENTIDO DURADOURO DA BELEZA NA ARQUITETURA

Jota Guedes
16 min readNov 2, 2019

Jota Guedes — 02.11.2019

“Por várias décadas, arquitetos novatos foram condicionados pela mensagem de que a gratificação sensual do ornamento e das formas arquitetônicas, superfícies e cores era um ato criminoso. Afirma-se que tais fontes de prazer são adequadas apenas para povos primitivos e degenerados sociais. De fato, uma não-resposta cultivada a elementos arquitetônicos sensualmente emotivos é suposta como uma característica do indivíduo intelectualmente avançado. Como uma reação psicológica e fisiológica a esses elementos proibidos é normal, no entanto, esta mensagem induz sentimentos de culpa e inutilidade, como exigido para quebrar o espírito de um aluno. A autoestima é então reconstruída usando o repertório modernista de formas e superfícies estranhas e hostis — e, a partir de então, apenas a realidade do culto é considerada válida”

Os grandes gênios da arquitetura são raríssimos. Obras de grande vulto artístico são cumes de difícil alcance por serem dispendiosas, por serem complexas do ponto de vista técnico, por dependerem da sedimentação de conhecimentos sedimentados a muito custo e por refletirem a sensibilidade extrema de mentes brilhantes.

Do topo percebemos melhor a planície dos arquitetos-médios, daquela massa de profissionais despejados ano após ano pelas faculdades que pululam nas esquinas. Com seu humor típico, particularmente orientados pelo jargão niemeyeriano (“arquitetura é invenção”), tentam nos convencer de que arquitetura é por excelência uma atividade criativa. Entretanto, para o bem da verdade, poucos arquitetos possuem o talento necessário para a inovação: alguns farão projetos medianos e muitos, acredito, serão francamente ruins. Uma das consequências inevitáveis deste modo de encarar a arquitetura é a diminuição significativa da qualidade do espaço construído, e não é difícil compreender quais são as implicações para as cidades. Apesar de toda a miséria, há uma horda de construtores e arquitetos ativos que nutrem-se diariamente da falsa ilusão do seu próprio gênio, que misturada à pura e simples incompetência e, não raras vezes, calcada numa incompreensão aguda dos grandes mestres do passado, nos fazem ter visões aterradoras sobre o que nos aguarda adiante: a fealdade ubíqua. Fatos trágicos da prática arquitetônica recente, que ilustram a falência estrutural deste paradigma pedagógico, nos conduzirão à uma digressão cabal: O que a arquitetura clássica pode nos ensinar a respeito deste panorama desastroso?

Se Francesco Perrota-Bosch pôs o gênio brasileiro sob escrutínio, num artigo sobre a trajetória profissional fatídica do ilustríssimo arquiteto Oscar Niemeyer, foi para apontar as possíveis armadilhas, muitas delas inevitáveis, as quais diversos arquitetos estão sujeitos na medida em que são tomados pela embriaguez da auto beatificação.

O grande discurso eloquente — não raramente cínico e pedante — e autocentrado de um falso mestre, somado às críticas bajulatórias de uma trupe de patronos culturais, criam essa espécie de atmosfera propícia à “doutrinação”. Mesmo quando atenuado, o ambiente acadêmico está saturado de ar estético autoritário, que sendo discreto e ao mesmo tempo inconteste, inibe as alternativas contrárias, e se impõe mais pela falta de antídotos adequados que por um dado conjunto de crenças impostas por uma cartilha.

Lembro-me de um exercício de plástica no primeiro ano da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, quando fui repreendido por uma tutora quanto inseri um arremate num suporte que secamente pousava sobre uma superfície plana. Eu não notara o pecado capital que havia cometido: eu estava manejando o ornamento. Foi assim que fui pela primeira vez introduzido ao “culto” e aos poucos compreendi o aspecto imoral da minha conduta. Daí em diante, segui adaptando meus gestos ao imperativo acadêmico circundante — o que parecia ser algo tão natural quanto decorar a mesa de jantar para estimados amigos tornou-se um estorvo estético a ser corrigido. O artigo de Francesco Perrota-Bosch foi um ponto-fora-da-curva, que não apenas pôs em cheque o status cultural do arquiteto modernista, mas impôs uma legião de bajuladores à exposição do ridículo, pois evidente ficou que o maior expoente da arquitetura moderna brasileira tornara-se uma paródia de si mesmo.

A pressão inercial exercida pelo meio cultural vigente ganha um verniz de curiosidade sociológica quando as anedotas de bastidores de figuras internacionalmente importantes vêm à tona. Nikos Salingaros conta-nos uma história inusitada que envolveu uma das obras emblemáticas do genial arquiteto americano Louis Kahn:

Há uma história de que Kahn queria preencher a praça central do Salk Institute com árvores, assim como o bosque em frente ao Museu Kimbell, mas que Luis Barragán [!] disse a ele para não fazê-lo. Em vez disso, Barragán o aconselhou a usar apenas pedra simples — mantendo a praça austera e vazia: “Não coloque uma folha, nem planta, nem uma flor, nem sujeira. Absolutamente nada”. Barragán estava certo, já que essa visão dramática do mar representa a essência do que é o modernismo, e colocou o Salk Institute no mapa arquitetônico. Eu teria preferido as árvores, no entanto. Elas teriam proporcionado um lugar agradável para os cientistas comerem um sanduíche.

No entanto, isso é nada comparado à exposição humana a acidentes fatais. Quando o gênio indomável de Enric Miralles foi retratado por Susan Bain em seu livro Holyrood. The Inside Story, o problema tomou outra proporção. O livro retrata os bastidores da construção do Parlamento Escocês projetado pelo arquiteto Catalão. Compreender a obra de Miralles é constatar que o seu mérito é, em boa parte, devido à sua equipe de engenheiros e colaboradores, em diversos níveis. E mesmo com um exército de profissionais competentes a sua disposição, o seu caso revela o quanto os voos estéticos de um arquiteto podem gerar perigos e desconfiança generalizada — e uma boa quantia de prejuízos financeiros. Susan nos conta o seguinte:

Com Enric Miralles selecionado como o principal designer do novo parlamento, a Escócia finalmente teria um foco para todas as frustrações que todo o processo de Holyrood gerou até agora. Poucas horas depois da nomeação da EMBT / RMJM, a reação contra ele havia começado. No dia 8 de julho, apenas dois dias depois da seleção do arquiteto, a primeira história “anti-Miralles” séria foi publicada. O designer Catalão seria elencado como “El Collapso”, depois de ter sido noticiado que o teto de um estádio esportivo que ele projetara no norte da Espanha havia cedido. Um dia depois, foi confirmado que Miralles não tinha realmente sido culpado. Empreiteiros da construção eram os responsáveis, e relatos de um processo de vários milhões de libras contra ele não eram verdadeiros.

Tempos depois — 18 meses após a inauguração do parlamento — Auslan Cramb, correspondente do Telegraph na Escócia, reportou o que possivelmente deixou os críticos contumazes do paradigmático arquiteto em estado de revolta:

Quando você paga mais de £ 430 milhões por um novo prédio, o mínimo que você espera é um teto decente sobre sua cabeça. Mas 18 meses depois de sua abertura, o parlamento Escocês teve que ser evacuado ontem depois que parte de seu teto ameaçou entrar em colapso. Uma extremidade de uma viga de carvalho de 12 pés de comprimento se soltou de seu plug de aço e ficou pendurada acima dos bancos conservadores na câmara de debates. Ele varreu um arco de cerca de 70 graus e chegou perto de bater em uma tela de vidro. A área abaixo da viga foi inicialmente evacuada e o debate continuou por mais 30 minutos antes de Murray Tosh, o vice-presidente, decidir esvaziar a câmara. Os procedimentos foram então suspensos durante o dia e os engenheiros estruturais foram chamados.

Os voos poéticos podem impulsionar a técnica e isso é um axioma do labor humano. Entretanto, ninguém razoável pode negar o valor de um edifício que faz transparecer em suas formas algum sentido de ordem, segurança, estabilidade e durabilidade, por mais modesto que seja. Muito menos sob os pretextos pedantes de uma inconveniente e pretensiosa avant-garde.

Arquitetos engajados em suas rotinas conceituais são especialistas em negar o óbvio, como o deixa claro o arquiteto português Eduardo Souto Moura:

A reação da proprietária ante a primeira proposta que fiz do projeto não foi a melhor […]. Queria uma casa de um piso com cobertura inclinada, uma casa que não tivesse nada que fosse diferente de uma casa tradicional portuguesa. Respondi às sugestões do cliente explicando-lhe que hoje em dia não tem muito sentido construir uma casa com cobertura inclinada imitando a arquitetura popular. Assim que tentei conjugar ambas ideias (a minha e a do cliente) e […] utilizei o desnível de 45 graus para dar a mesma inclinação à casa; a cobertura inclinou-se automaticamente.

A crítica engajada torna esse cenário ainda mais constrangedor. Rafael Moneo, em seu livro Inquietação Teórica e Estratégia Projetual, chega ao extremo da adulação cega:

[…]a diversão do arquiteto parece ser a luta para fazer conviver elementos díspares na casa:[…]o complexo espaço da sala de jantar, animado pela dança de dois pilares[…]. Ninguém sensato é capaz de aceitar um contrassenso monumental desses: é preciso muita metafísica de botequim para elevar a intrusão caprichosa e arrogante de pilares num recinto compacto à categoria de ludicidade dialética.

Outro aspecto espantoso é que ao confrontarmos um edifício excêntrico (em geral não há nada que possa inteligir a não ser o fato de que nos causa espanto), invariavelmente, mil matizes de impressões desconexas acabam embotando o pensamento. Voltando ao caso de Enric Miralles, Susan Bain resumiu a sua ingênua impressão sobre o arquiteto como um sujeito “altamente inteligente com um senso de humor travesso, […] exalava enorme criatividade intelectual e tremenda ingenuidade.” Porém, para alguns colegas próximos, ele poderia ser apenas classificado como um “malandro”. Não é raro que o efeito imediato da extravagância sobre as pessoas em geral transite entre a repulsa e a afetação tola.

Não há dúvidas de que a arte de construir excentricidades requer uma boa dose de sedução ou, por que não dizer, malandragem intelectual. Bain ainda relata que Miralles foi repetidamente identificado como o mais avant-garde entre os arquitetos da lista final, porém, ou por essa razão, incompreensível aos olhos do público visitante da amostra que antecedeu o resultado. Após escolhido o vencedor, ela especula sobre as razões envolvidas:

[…] E como Joan O’Connor, membro do painel, explicou: “Enric Miralles venceu a competição não apenas por suas folhas na [ideia da] paisagem, mas ganhou porque disse uma coisa a Donald Dewar. Ele disse: “Afinal de contas, o parlamento é apenas uma maneira diferente de se sentar juntos.”E isso capturou minha imaginação. […] havia outras razões para Miralles ter sido tão bem sucedido. Altamente carismático, ele havia começado uma entrevista reorganizando todos os assentos para demonstrar o impacto que “sentar-se juntos” poderia ter. Foi uma compreensão essencial do fórum político, onde a discussão seria primordial. Seu design de “arcos virados” lembrava o Leith, o lugar favorito de Dewar.

Uma vertente da construção conhecida como Deconstrutivista é essencialmente carregada de pseudo-intelectualismo sedutor. Embora o arquiteto deconstrutivista goze de prestígio elevado entre os pares, o espectador comum com alguma intuição intelectual ficaria chocado ao notar até que ponto é possível justificar aberrações construídas. Este é o caso de Bernard Tschumi. Nikos Salingaros, autor de um ensaio devastador sobre o arquiteto, nos faz refletir a respeito:

A arquitetura como profissão se desconectou repetidamente da sua base de conhecimento e de outras disciplinas, em um esforço para permanecer eternamente “contemporânea” (as muito propagadas conexões recentes à filosofia, à linguística e à ciência, a despeito da decepção a que agora estão expostas). Esta é, evidentemente, a característica definidora de uma moda; o oposto de uma disciplina adequada. Repetidamente, a arquitetura ignorou o conhecimento derivado de edifícios e cidades e adotou slogans e influências sem sentido.

A grande arquitetura, como eu havia mencionado, é de difícil realização. Requer talento, dedicação ilimitada e o domínio técnico necessário para tornar os voos poéticos possíveis e duradouros. Tomemos novamente a obra de Louis Kahn como exemplo. Alain de Botton, em seu simpático ensaio A Arquitetura da Felicidade, descreve como o arquiteto americano alcançou a simplicidade e a elegância ao conciliar o concreto aparente e os paineis de carvalho inglês — algo que exige além de sensibilidade, intimidade profunda com a técnica.

Embora, em um dado nível, o gesto conciso do desenho pareça fácil de realizar, não o é de maneira alguma. A economia do traço não significa necessariamente a simplicidade da sua execução, disse-me certa vez um amigo arquiteto. Na realidade, inúmeros exemplos demonstram que as marcas do gênio criativo são muitas vezes forjadas sob circunstâncias extremas, beirando o ridículo, como o relato do arquiteto e ex-pugilista Tadao Ando:

[…] pouco a pouco acumulei controle da técnica, por meio de erros e acertos, como no que diz respeito às especificações dos moldes para um bom afastamento do concreto após sua colocação, entre outros exemplos. […] Logo após o início das atividades do escritório, nos dias da concretagem, eu me juntava aos operários no canteiro e colocava mãos à obra. Quando encontrava um deles relaxando, eu o admoestava a ponto de ser capaz de socá-lo se preciso fosse, para que esse se empenhasse ao máximo. O resultado do concreto depende da confiança das relações entre o arquiteto e o pessoal do canteiro de obras, da capacidade de se formar no construtor o orgulho por construir algo.

Todo o esforço de Ando é dirigido para um objetivo pretensioso: alcançar “uma arquitetura nua, na qual tudo se manifesta pela proporção dos espaços recortados das paredes e pela luz nele embutida”. Se por um lado há avanços técnicos importantes, por outro há custos. E aqui notamos um aspecto indecente das vanguardas artísticas que eu já havíamos mencionado: o custo humano. Como quando a simples necessidade humana do corrimão é negada:

“Pandit Jawaharlal Nehru convidou Le Corbusier para a Índia, com consequências infelizes para Chandigarh. Madame Manorama Sarabhai encomendou uma casa particular em Ahmedabad, mas expressou sérias preocupações sobre a falta de um corrimão no terraço e nas varandas. Aqui está a resposta de Le Corbusier, como relatada à jornalista Taya Zinkin: ‘A boa mulher temia que, quando seus filhos se casassem, suas crianças caíssem e se matassem, como se eu me importasse. Como se eu, Le Corbusier, me comprometesse com o desenho por causa de seus pirralhos não nascidos!’ ”

Há dois casos emblemáticos que aludem ao que Tadao Ando entende como a beleza “manifesta pelas proporções dos espaços”. E aqui, um ponto importante: é um tanto ilusória a ideia de que o manejo das proporções, por si mesmas, na arquitetura, afete significativamente a qualidade estética do espaço construído. Devo essa afirmação a dois ensaios: A Aplicação da Razão Dourada à Arquitetura, de Nikos Salingaros, e Alberti e a Arte do Apropriado, de Roger Scruton. Há boas razões para acreditar nisso, mas vou me deter ao ponto essencial: a ideia da progressão escalar.

Fundamental é compreender que a beleza arquitetônica requer detalhes esteticamente engendrados e integrados em uma hierarquia de escala onde a proporção é absorvida e requalificada. Apesar da ausência de progressão escalar não nos impedir de manejar a sensação de espaço — por meio das extensões e das características da superfície das paredes, dos tetos e dos pisos — é suficiente para nos deixar à mercê da feiura e distantes da beleza, no sentido clássico e mais intuitivo do termo. Isso pode ser constatado por experimentos empíricos que revelam que as superfícies planas e cegas repelem o olhar quando confrontadas com elementos adjacentes dotados de níveis mais complexos de detalhes.

Voltemos a casos emblemáticos. Para ilustrar a insensatez da ideia de que a proporção, por si mesma, é uma variável estética fundamental, elenquei o projeto do MUBE de Paulo Mendes da Rocha e a Casa Wittgenstein projetada pelo próprio filósofo. Remeto-me ainda à figura do engenheiro Mário Franco para ilustrar as dificuldades técnicas de se realizar o gesto conciso de um gênio.

Mário Franco foi responsável por desenvolver o projeto estrutural que resultou, em suas próprias palavras, na “tal pedra do Paulo” (o pórtico do MUBE ) — referindo-se à intenção poética “terrivelmente difícil” de Mendes ao propor “colocar uma pedra no céu”. Aqui ele resume sua jornada:

Dentro da ideia de se manterem as proporções iniciais que eram 60 m de vão e aproximadamente 2 m de altura, foi feito todo um paciente, realmente muito paciente, trabalho de pesquisa de soluções. Eu comecei, evidentemente, com a altura de 2 metros e uma estrutura extremamente esbelta, muito delgada. Porém esta estrutura resultou excessivamente flexível e contenções de compressões de concreto muito altas. Eu precisaria de um concreto mais resistente. […] Isso não seria impossível de se fazer mas já estaria um pouco fora daquilo que eu pretendia em termos de tecnologia dos materiais. Então, fiz uma segunda tentativa de dimensionamento com 2 metros e meio de altura. Essa solução deu uma cablagem protendida razoável mas ficava aquela espinha de que eu tinha aumentado a altura para 2,50. Contudo, o trabalho convergiu para uma solução final que tem o caixão com 2 metros de altura e aumentado em 20 cm porque nós precisávamos de duas abas para arrematar a impermeabilização.

Ainda há outro caso curioso: Wittgenstein, o filósofo que resolveu realizar o sonho de ser um arquiteto. Aqui, o capricho do gênio filosófico foi reduzido à filigrana:

A Casa Wittgenstein, na antiquada e feia Kundmanngasse, em Viena, era um pedaço cúbico austero, desprovido de qualquer decoração externa. Nisso, a casa que o filósofo projetou era fiel aos princípios arquitetônicos do amigo íntimo de Wittgenstein, Adolf Loos, que certa vez escreveu um artigo chamado Ornamento e Crime, no qual argumentava que a supressão da decoração era necessária para regular a paixão. […] Quando a casa estava quase completa, ele insistiu que um teto fosse elevado em 30 mm para que as proporções que ele queria (3: 1, 3: 2, 2: 1) fossem perfeitamente executadas. “Diga-me”, perguntou um serralheiro, “um milímetro aqui ou ali realmente importa para você?”, “Sim!”, rugiu Wittgenstein.

Nos dois casos, a ideia da proporção como fundamento primordial da beleza arquitetônica pode ser colocada em dúvida por meio de um experimento simples, cujo argumento desenvolvi em outro artigo, com o qual tentei demonstrar que os ornamentos criam coesão e harmonia, independentemente das proporções.

Mas o que fazer diante do vulto destes arquitetos que nos são apresentados como exemplos a seguir? Na minha modesta opinião, a questão elementar é que os gestos destas figuras são de difícil mimese e devem ser encarados com a devida distância. A degradação envolvida na tentativa de reproduzi-los é inevitável, e a repetição de clichês é uma das substâncias atuais da decadência do ambiente construído. Nós, arquitetos, sabemos que compreender a obra do arquiteto Lelé é fundamental. Porém, ao compreendermos o seu legado deveríamos deduzir daí a extrema dificuldade que é tentar reproduzi-lo e de estabelecer uma continuidade. A sua obra é uma das mais originais já produzidas no nosso país, e por esta razão, intrinsecamente falível. Não apenas a qualidade plástica nos surpreende. Paradigmático também é o sistema produtivo desenvolvido que ele alcançou e dominou, e sua capacidade de restabelecer, a seu modo, um diálogo com uma longa tradição, mesclando várias influências modernas. O resultado inexorável de tentarmos imitá-lo é o clichê. Certamente isso deve valer para qualquer estilo, mas há aspectos distintos que só o desenho clássico e tradicional podem nos oferecer.

Creio que o mecanismo para driblar tantos dilemas pode ser encontrado em certas virtudes inerentes ao desenho clássico e sobretudo ao vernáculo clássico. A partir daqui, e a guisa de conclusão, tomo como necessário um comentário mais denso, porém sucinto, sobre o aspecto público da arquitetura e da sua relação com o projeto modernista. Baseio todo o raciocínio em apontamentos feitos por Roger Scruton.

Como delineia o filósofo conservador inglês, o caráter público da arquitetura é um dos seus aspectos mais importantes. É aquele que resplandece quando a arquitetura é comparada a outras formas de arte. A entropia resultante do desenvolvimento do gênio artístico individual — a explosão das sensibilidades estéticas que torna o espaço público um grande armazém de egos em disputa por atenção — constitui um problema estrutural da nossa época. A cada aposta em um sistema de novas formas, mais caótica é a percepção que temos do tecido figurativo das cidades. É neste sentido que o papel público da arquitetura se impõe. O grosso das pessoas está alheio às operações de mudança de gosto desenvolvidas em pequenos círculos intelectuais de caráter elitista e exclusivista — como é possível observar nos desenvolvimentos da cultura da moda, das artes plásticas, música, etc. Scruton argumenta que os traços expressivos da arquitetura só são significativos quando a sua abordagem privativa é, de algum modo, atenuada. Assim, encontramos ressonância com a ideia da impessoalidade do vernáculo clássico — de sua maneira especial de nos sensibilizar como se expressasse tempos remotos de cordialidade pública universal.

Os arquitetos modernos, individualistas nos seus objetivos expressivos — e por assim dizer, auto conscientes de suas subjetividades — tencionam um público particular e restrito, munindo-o com aparato intelectual próprio que lhe permite inteligir as extravagâncias construídas e alcançar seu significado particular. E é neste sentido que a tradição tornou-se opaca para o modernista revolucionário e assim foi banida do meio acadêmico.

Como Scruton faz notar, expressão e tradição são aspectos incontornáveis da estratégia modernista, na medida em que entende-se que a tradição clássica torna-se impermeável à consciência moderna, imobilizando o artista cioso de expressar sentimentos íntimos consonantes com as supostas expectativas vigentes. No entanto, a tal “consciência moderna” pode ser encarada de outro modo — como um conceito permeável a um empreendimento em favor da tradição e não contra ela.

A tradição não é como um dado objetivo acessível a todos, herdado por sua própria inércia, mas um ideal a ser redescoberto e conquistado pela imaginação e, portanto, algo distinto da noção de que seus frutos haveriam de ser solapados por um Zeitgeist dominante (espírito da época) que se estabelece involuntariamente — essa ideia inundou o mundo acadêmico da arquitetura por meio de uma bibliografia especializada que merece ser revisitada em outra ocasião. O importante aqui é notar que o fluxo das mudanças de estilo se estabeleceram na era moderna, em grande medida, por um verdadeiro tour de force, ou, em outras palavras, pela força de pesada propaganda.

Com efeito, para Scruton, o projeto modernista não diz respeito a uma mudança de gosto implícito, inerente à época, mas uma batalha travada pela conquista e formação de um público que legitimou a sua existência. O êxito do artista moderno dependia de sua capacidade de forjar um público que desse sentido a sua própria noção de modernidade. Conforme argumenta Scruton, trata-se de um projeto inviável em seus termos mais particulares e em sua abrangência, cuja própria tentativa de formação de um público, porém, serviu como pré-requisito do seu êxito eventual.

O importante a se considerar é: a arquitetura impõe-se pela própria condição do espaço que ocupa, qual seja, o espaço público. Este espaço é acessível a todos e determina um significado político. Nesta esfera os objetivos coletivos devem se sobrepor aos caprichos individuais do arquiteto e dissuadi-lo de refugiar-se numa subjetividade cúmplice e tribal. O espaço público nos inspira quando o seu carácter de conciliação é revelado. O arquiteto então deve, ou ao menos deveria, ocupar-se da responsabilidade com o passado “sem ironias”, afastando-se da imposição de “um legado a possuir por ato de autoconsciência” da vontade de uma época em especial e, ao invés disso, apropriar-se imaginativamente do que poderíamos chamar de “senso estético comum”, que pode fazer florescer em sua prática a grande virtude embutida no vernáculo clássico, como assim o defende Scruton numa série de ensaios magistrais reunidos no volume The Classical Vernacular: Architectural Principles in an Age of Nihilism, e em seu livro A Estética da Arquitetura.

Por todas as razões expostas, é recomendado aos colegas tornar a arquitetura clássica e tradicional uma presença íntima e constante, sem as perversões irônicas pós-modernistas e o ranço do ressentimento contemporâneo, mas com o respeito obsequioso que lhe é merecido, pois creio que é no manejo do vocabulário das antigas tradições construtivas que reside o sentido mais elevado e duradouro da beleza na arquitetura.

Ainda é importante registrar algo de muito valioso escrito por John V. Van Pelt, que, em linhas gerais, nos ensina que o benefício dos antigos estilos não reside na sua realização contemporânea a qualquer custo, mas na oportunidade de termos contato íntimo com o senso de maestria que o seu estudo implica. O estudo de um estilo, até o seus mínimos detalhes, é a garantia de que aquele que o faz fixará no seu repertório o que de melhor foi desenvolvido pelos gênios de outros tempos e, mais tarde, mesmo resistindo à ideia de imitá-los, visto que as circunstâncias materiais e espirituais de sua geração já não são as mesmas, guardará no seu espírito algo da preciosa lição dada pelos gênios e terá em si uma fonte de eterna sabedoria capaz de revigorar a sua própria arte.

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