Notas Sobre as Raízes Antiestéticas da Arquitetura Moderna

Jota Guedes
6 min readApr 21, 2021

Por Jota Guedes

A Experiência Estética Comum

Os objetos à nossa volta não se apresentam como entes opacos e sugerir que o vácuo estético é possível em nossas vidas soa como um absurdo. Tomemos como exemplo a experiência do carpinteiro: ao ajustar uma porta ou uma janela, o seu engajamento é permeado por razões não funcionais que vão desde a simples noção de que a aparência lhe “parece bem” a alusões simbólicas que evocam os ideias de honestidade, domesticidade, gentileza, decoro, elegância, etc. Todo o campo das experiências humanas que afloram das aparências, e não se esgotam num raciocínio instrumental, é a condição mesma da possibilidade da experiência estética. A tentativa de separarmos analiticamente em domínios distintos a aparência, o significado e a função de um dado objeto, tende a desencadear em nós um número infindável de desentendimentos.

Desde que Baumgarden, em 1750, animou a filosofia da arte — da poesia em especial — resgatando o conceito grego de aesthesis, não há notícias, até onde pude averiguar, de um momento tão hostil à experiência estética comum quanto à Era moderna. O que poderia parecer um absurdo, tornou-se uma pedra de toque na Era da máquina.

Transformações Políticas

Uma certa atmosfera de exacerbada racionalização inundou o mundo a partir dos desdobramentos políticos do que conhecemos como a Revolução Francesa (1789–1799). A agitação política que movimentou essa época tomou, desde o início, contornos antirreligiosos. Os revolucionários, que a tudo negam, negaram, em primeiro lugar, a cosmovisão religiosa e destituíram Deus do seu trono, ao passo que impuseram um sucedâneo espúrio: o culto secular à Razão. À medida que a mentalidade revolucionária ganhava intensidade, despontavam os ideias de mudança radical da realidade refletidos em planos de controle cada vez mais abrangentes e racionalizados.

A Mentalidade Antiestética

Roger Scruton, num artigo intitulado Public Space and the Classical Vernacular, aponta que a inspiração comum da utopia que causou o socialismo soviético e a arquitetura moderna fez com que, por um momento, os fenômenos fossem confundidos. Em boa medida, os acontecimentos parecem ter sido o resultado de uma certa mentalidade.

As relações entre as Revoluções Francesa e Russa, e a ideologia da revolução moderna na arquitetura, não podem ser descritas em poucas linhas. Aqui, porém, pretendo elencar dois aspectos. O primeiro ponto de contato é a arregimentação da linguagem.

Logo após a Revolução Russa, por exemplo, uma espécie de assédio moral antiestético começou a aflorar no meio cultural. Expressões aceradas como os slogans lançados em 1920 por A. Rodchenko e U. Stepanova, “Mate o último apego remanescente do pensamento humano à arte!” e “Abaixo a arte que apenas camufla a incompetência da humanidade!”, representam parte do vocabulário revolucionário da época. Esse comportamento grosseiro deriva, creio, da crença superlativa na racionalização da sociedade. E aqui temos o segundo ponto de contato: a crença de que é possível planejar racionalmente partes da sociedade ou ela como um todo.

Edifício Tsentrosoiuz

No seu livro A Estética da Arquitetura, Scruton alega que, na arquitetura, um tipo especial de doutrina racionalista — representada pela Teoria do Projeto (Design Theory) — foi expressa por arquitetos que falavam de “problemas”, “métodos” e “soluções” de projeto. Essa linguagem é familiar e o arquiteto contemporâneo não tem nenhuma dificuldade em articulá-la. No entanto, na sua origem, ela refletia o relativo embotamento das considerações estéticas ao considerá-las um resíduo periférico da concepção arquitetônica. Nas palavras do filósofo inglês, tal doutrina sublinha o seguinte: “a primeira tarefa do projeto […] é entender as necessidades do cliente potencial; o arquiteto deve então estudar a interação destas necessidades, e finalmente conceber um mecanismo que responda a elas o quanto possível”. Nas versões mais ruidosas da apologia — daquelas derivadas do credo soviético leninista — , considerações estéticas não são apenas secundárias; elas representam um estorvo moral e político: “O arquiteto leninista não é um lacaio da estética, ao contrário do colega do Ocidente, não é um advogado e guardião dos interesses da classe capitalista aí dominante… Para ele a arquitetura não é um estímulo estético mas uma arma de gume afiado na luta de classes. (Manifesto na revista suíça ABC (1928), intitulado “ABC Demands the Dictatorship of the Machine”.).

O início do século XX foi profícuo em manifestos que pontificavam a arquitetura como uma expressão completa da economia de meios. Na época, a máquina foi uma grande inspiração e a ênfase na razão era um meio, ao menos em um nível retórico, de banir os aspectos meramente estéticos dos edifícios em favor de ideais sociais abrangentes carregados com tintas totalitárias. Daniel paz, num artigo chamado Um Sonho de Unidade: João Filgueiras Lima e sua Gesamtkunstwerk, aborda o tema da mentalidade revolucionária na arquitetura, nos lembrando dos intentos megalômanos de dois arquitetos da época: “A título de exemplo,[…]os conjuntos habitacionais soviéticos, com a redução dos espaços individuais e ampliação dos coletivos para induzir a formação da nova sociedade socialista a partir da reeducação de cada morador, tal como no Edifício Narkomfin (1930), dos arquitetos Moisei Ginzburg e Ignati Milinis, em Moscou. Buckminster Fuller com sua Dymaxion House pretendia modificar completamente o modo de vida do seu usuário, a ponto de revolucionar até a higiene pessoal, por uma nebulização com ar comprimido e água pulverizada.”

Hannes Meyer, um dos diretores da Bauhaus, num manifesto com linguagem grandiloquente, professou que “todas as coisas neste mundo são um produto da fórmula: (função X economia)”. E vociferou que “todas essas coisas não são, portanto, obras de arte: / toda arte é composição e, por isso, inadequada para atingir objetivos. / toda vida é função e, portanto, não artística. / a ideia da ‘composição de um porto’ é hilária! / mas como é feito um plano da cidade? ou um plano de uma habitação? composição ou função? arte ou vida ?????”.

Quando Le Corbusier, o maior expoente da arquitetura moderna, formulou os “Cinco pontos de uma nova arquitetura”, ele o fez com óbvios intentos antiestéticos: “Os pontos a seguir não se relacionam de forma alguma com fantasias estéticas ou uma busca por efeitos antiquados, mas dizem respeito a fatos arquitetônicos que implicam um tipo inteiramente novo de construção, da habitação aos edifícios palacianos”. Além de ter expressado um profundo entusiasmo com o experimento social da URSS, estava fortemente atraído pela doutrina sindicalista, que o fez, em 1928, aceitar a comissão para projetar, a pedido do chefe da União Sindical Soviética, o edifício da sua sede central em Moscou, hoje conhecido como o Edifício Tsentrosoiuz. As ideias do arquiteto franco-suíço circularam no meio cultural soviético através do jornal Sovremennaia arkhitektura (Arquitetura moderna), cujas páginas eram frequentemente marcadas pela apologia dos altos ideais de sua obra e serviam de inspiração para toda a geração de jovens arquitetos da época.

A falácia Funcionalista

É farto o material antropológico que contradiz a primazia da utilidade como força matricial da arquitetura. Ademais, a grande variedade de formas construtivas primitivas das quais se pode deduzir a função de abrigo, por exemplo, reforça a cresça legítima de que os primeiros abrigos não derivavam de nenhuma função utilitária elementar (Amos Rapoport, Origens Culturais da Arquitetura, 1984)

A falácia funcionalista reside no fato de que nossas escolhas não são completamente preenchidas por relações entre meios e fins. Mesmo na escolha da indumentária, por exemplo, o cálculo funcional é absorvido por inúmeras razões que compreendemos apenas intuitivamente, que podemos trazer à razão através do exercício da imaginação e análise, e assim, podemos oferecer credenciais distintas à satisfação utilitária das nossas escolhas, como os valores e os significados.

O exemplo do carpinteiro revela verdades importantes sobre a natureza da arquitetura. Mesmo para um marxista que não foi seduzido pela ideia espúria de que frisos e molduras são caprichos burgueses, não é difícil compartilhar com um filósofo conservador as mesmas conclusões: “Não menos censurável, pelo fenecer da experiência, é o fato de as coisas sob a lei do puro funcionalismo assumirem uma forma que limita o contato com elas a uma mera operação e não tolerarem um excedente nem de liberdade de conduta nem de autonomia das coisas, que devia sobreviver como a alma da experiência, porque não é consumido no momento da ação.” (Theodor Adorno, Minima Moralia, 1974)

A nossa experiência comum nos indica que este “excedente” estético que emerge do convívio com as coisas, para além do que é utilitariamente consumido, só pode nos ser negado pelo impulso retórico dos apologistas insensatos. Mesmo um objeto concebido sob fortes restrições funcionais, como um aeroplano, por exemplo, parece exibir uma espécie de emanação fluídica com um espírito independente. Não fosse assim, teríamos razões para crer que a máquina jamais seria uma inspiração visual viável, pois, numa medida que não é possível desprezar, é para algo da sua feição, do que há de inefável em seu caráter, que o arquiteto moderno devotou a sua atenção.

Le Corbusier, Aircraft, 1935.

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