A ANATOMIA DO MOBILIÁRIO TRADICIONAL

Jota Guedes
10 min readJan 31, 2024

João Guedes

(rascunho)

Breve introdução

O mobiliário tradicional é capaz de impressionar pela beleza e, aos olhos vigilantes, é uma fonte de riquezas inestimável, eterno guardião dos saberes artesanais. Aos mais sensíveis, é irremediável a tentação de ver revelados os mistérios escondidos nas juntas rematadas pelos antigos mestres. Tal é o sentido de uma busca infrutífera: muitos segredos parecem perdidos nas brumas do tempo.

Até onde foi possível observar, não há, na tradição brasileira, material pedagógico de registro das técnicas antigas e, ao que me consta, a transmissão da cultura da marcenaria tradicional, nos tempos de antanho (no Brasil), foi, em vasta medida, desenvolvida no contato direto entre mestre e aprendiz. Assim teria sido o caso do mestre Aleijadinho (Ouro Preto, 1730): o maior entre os nossos maiores artistas plásticos teria aprendido sua arte na convivência com outros mestres — como, por exemplo, o seu pai, Manuel Francisco Lisboa, Português, carpinteiro de profissão.

Ainda devemos lembrar do legado perene deixado pelo mestre entalhador Antônio Oppido (São Paulo,1907), responsável pelo entalhe das peças que compõem o belíssimo acervo de espécies de madeiras do Museu Florestal Octávio Vecchi, ao norte da Capital Paulista. Oppido começou sua carreira ainda na indústria de móveis do pai, mas foi no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, entre os anos de 1917 e 1920, onde aperfeiçoou sua técnica (ver “O Museu Florestal Octávio Vecchi). Sob guarda institucional, o acervo do Liceu consta de inúmeras obras pedagógicas, cuja maioria absoluta é de origem estrangeira e constituiu o referencial bibliográfico da instituição dos anos 1870 até 1940.

Uma única fonte brasileira que chegou ao meu conhecimento é a obra de Domingos Marcellini (Camerino, 1895), brasileiro naturalizado, nascido na Itália, que na década de 1920, com pouco mais de 30 anos de idade, já ministrava aulas de marcenaria na Escola Profissional de Amparo, cidade do interior do Estado de São Paulo. Foi também professor do SENAI entre os anos de 1942 e 1963, período no qual foram publicadas algumas de suas obras, entre as quais está o Manual Prático de Marcenaria.

As raras fontes nacionais são compensadas pelas estrangeiras, tanto antigas quanto atuais, gozando de ampla disponibilidade (p.ex. L’Art du Menuisier de André-Jacob Roubo e …, além das revistas Woodsmith e Fine Woodworking). E foi a partir da imersão neste universo que pude experimentar os desafios do ofício, e por alguns meses mantive uma oficina experimental, motivado, em boa medida, pelo desejo que nutre todo arquiteto de experimentar a realização dos seus esboços. Dessa aventura, algo aprendi sobre a arte da ensamblatura da madeira e dos aspectos característicos do desenho tradicional - principalmente o que diz respeito à arte da composição e algumas lições valiosas de geometria.

Uma mesa antiga

Um tipo de mesa chamada holandesa (fig. 1) que faz parte do meu acervo pessoal servirá de modelo para uma análise da qual pretendo extrair certas lições de tectônica e desenho. Desta peça, infelizmente, não foi possível determinar a origem e data de fabricação.

A partir de medições diretas e referências fotográficas (fig. 00), realizei um modelo digital da peça. Peça similar foi descrita por J. W. Rodrigues em um artigo para a revista do IPHAN (volume III) dedicada à arquitetura civil brasileira, de 1975. Registrou ele: “Existe entre nós enorme variedade de mesas deste gênero, sempre obedecendo os mesmos princípios. O tampo é de cedro ou outra madeira leve, guarnecido por forte requadro de jacarandá preso por encaixe e grandes pregos. A caixa, com as gavetas e na linha inferior, um cordão, moldura ou rendado. Os pés ondulados, abrindo para baixo, são fortes e simplesmente recortados, às vezes exagerados em suas curvas e volutas, sempre travadas por torneados ou travessas lisas ou recortadas.[…] De regra o tampo é prolongado nas pontas.”

O conjunto de peças simples rememora o sistema construtivo trilítico da arquitetura (excetuando-se o travejamento, ou travamento) e muitos exemplos semelhantes, dos mais variados modelos e tamanhos, podem ser encontrados em catálogos antigos (fig. 00).

Por capricho didático, as partes componentes da mesa serão apresentadas em sequência, extraindo em cada momento as lições mais proveitosas.

O tampo

O tampo é formado por uma chapa de compensado guarnecida por molduras de madeira maciça(fig. 00). O detalhe da guarnição é elementar: perfil dotado de curvas simples (côncava e convexa) associadas a recortes retos. Esse conjunto se repetirá em outras partes da peça, total ou parcialmente, como veremos. Como deve ser de conhecimento do leitor, o uso das molduras, neste caso, tem triplo sentido, pelo menos: evitar os inconvenientes das arestas vivas que podem gerar farpas; resguardas as bordas de materiais menos resistentes; dar graça e leveza pela captura matizada da luz (algumas destas lições são sugeridas por C. Howard Walker, em Theory Of Moldings,).

A gaveta

Esta costuma ter um conjunto construtivo típico. Encaixes especiais (a meia-madeira) são essenciais para a estabilidade da peça. A frente é rematada por uma almofada com corte diamantado cujo centro possui um recesso para o embutimento do puxador. A almofada diamantada tem um papel estético fundamental, que se repetirá nas laterais da caixa, e consiste numa forma particular de captura da luz: aqui, já não falamos em degradê mas dos contrastes bem definidos entre os planos de luz e de sombra. Ainda, às almofadas também é reservado o papel de enriquecer as inoportunas faces cegas.

Para facilitar a reposição, rasgos servem de guia por onde desliza a chapa de compensado do fundo da gaveta.

O puxador

O puxador é feito de madeira torneada e encerra algumas curiosidades. Em um livro muito instrutivo, tomei nota de uma lição sobre a beleza dos contornos das molduras: “Geralmente linhas curvas compostas formadas (sem quebras) por mais de dois elementos são ruins” (v. A Discussion Of Compodition, de John Vredenburgh Van Pelt). Dito de outro modo: pequenas inflexões são interessantes quando acontecem no ponto de concordância entre duas ou mais curvas contíguas. Ainda, sob outro ângulo, C. Howard Walker comenta sobre o uso das inflexões (v. Theory Of Moldings). Escreveu ele: “[…] pequenos filetes entre molduras podem ser considerados como conjunções, e nunca devem ser exageradas”.

Tais conjunções, que podem ocorrer por inserções ou quebras (fig. 00), são muito bem-vindas, necessárias até, mas devem ser estudadas com o devido cuidado. O interessante é observar que o recurso evita as longas superfícies curvas e monótonas (fig. 00, a).

A caixa

A caixa que comporta a gaveta é formada por uma série de peças retangulares de pequena dimensão, onde todo o interesse floresce do valor estético dos remates (guarnição e almofadas). O triunfo deste modo de intervir na forma elementar da caixa, além de figurar como arremate das juntas visíveis, reside no prazer de explorar, através de variações sutis dos perfis, as possibilidades de imprimir caráter e estilo à peça. É uma fonte de alegria sem fim.

Os pés

“Sutileza e portanto refinamento e interesse engendrado nas sombras são obtidos pelo uso de segmentos que não são derivações de círculos, mas são ao mesmo tempo curvas elípticas desenhadas livremente ou seções cônicas, como hipérboles e parábolas”, é o que diz C. Howard Walker (v. Theory Of Moldings). E os Pés são assim formados: um conjunto de curvas livres recortadas na espessura de uma peça maciça de madeira.

Neste ponto, cabe observar uma lição de desenho fundamental: a harmonia, em boa parte, depende de uma dosagem equilibrada de efeitos de contraste, é o que diz H. Robertson no terceiro capítulo do seu Principios de la Composición Arquitectónica. Creio que há boas razões para acreditar nisso, como pretendo demonstrar a seguir.

O efeito gracioso do desenho dos pés é dado por uma linha estruturante sinuosa e desenvolvida por um conjunto de curvas livres — traçadas com curva francesa, suponho — que encerram efeitos de contraste em diversos níveis. Em primeiro lugar, as extremidades da peça que compõe cada pé, ao iniciar o movimento a partir de uma forma côncava na parte superior, depois finalizado num contorno convexo, na parte inferior, ilustram um efeito de contraste elementar, porém precioso. Deste modo, o movimento nasce em uma zona de sombra enfatizada pela forma côncava e termina numa forma convexa onde a luz é capturada com relativo vigor, e reforçada pela referência implícita da voluta (o pé, propriamente dito).

Quanto ao segundo nível dos efeitos de contraste, cabem algumas observações preliminares.

Para examinarmos o traçado, devemos lembrar de algumas lições de Henri Mayeux (em La Composition Decorative) que tratam das duas categorias de contornos possíveis e suas conexões: “Existem dois tipos de contornos: a curva ou perfil geral, e as molduras ou perfis de detalhe. Por princípio, cada curva de um contorno tem duas direções de ligação com a curva que precede ou que segue; seja dando continuidade ao movimento já impresso: daí a conexão contínua; ou interrompendo-o para tomar outra direção: daí a conexão contrastante”. As observações de Mayeux são importantes, e delas podemos extrair algumas sugestões fundamentais.

No traçado das “pernas” da mesa, podemos perceber com relativa clareza um motivo que se repete de forma espelhada (perfis de detalhe a e b da fig. 00). Este é o segundo nível de contraste e mais interessante; mais sutil. Observando com atenção, a inserção de um perfil de detalhe associado ao seu par espelhado produz três “acidentes”: o motivo em si possui uma quebra da linha contínua criando uma conjunção de interesse; o motivo cria duas conexões contrastantes (côncavas) que estabelecem contrapontos claros ao perfil geral; os efeitos de luz e sombra dos motivos pares são reversos, ou seja, são contrastantes na medida em que um deles possui uma face plana sombreada, contraposta a uma face curva com gradação longa de sombra, enquanto o outro estabelece o inverso (fig. 00).

Acidentes conduzidos desta maneira são dignos de mãos e olhos experimentados, que dão o toque de arte ao desenho, e são lições elementares de beleza engendrada com poucos recursos, mas com grande sensibilidade.

Algo fascinante de se notar são as qualidades dos efeitos dados pela variação de espessura, que são fundamentais, por exemplo, nos desenhos de colunas clássicas, através da aplicação da êntase. Tais efeitos são comumente explorados também no desenho tipográfico — como nas serifas, que são como que espécies de molduras aplicadas às letras para enfatizar as extremidades e reforçar a linha oculta por onde deslizam as palavras.

O que resta de comentário sobre os outros acidentes já não merece mais do que os desenhos sugerem.

A respeito da estabilidade estrutural, os pés são compostos por três peças encaixadas por espigas (fig. a e fig. b) que remetem a um princípio físico do qual se estabelece como critério de resistência da madeira a orientação correta dos veios em relação aos esforços atuantes - daí que a consequência dos pés recortados de uma peça inteiriça (fig. 00 a), cujos veios teriam naturalmente um único sentido, seria a formação de pontos sensíveis a rachaduras.

Travamento

O travejamento que une e estabiliza o conjunto não tem dotes especiais, excetuando-se a ensamblagem (encaixe) ao modo de cunha (cavilha com chaveta, v. Dicionário de Arquitetura), cujo toque artesanal renova o ímpeto vernacular da peça.

Conclusão

As anotações aqui apresentadas são parte de um desejo crescente de reavivar a cultura do desenho documental. Tenho plena consciência de que são raras as matérias dessa natureza, sobretudo das acompanhadas por análises mais fecundas dos detalhes do mobiliário tradicional brasileiro, que tanto merecem atenção.

Ao trabalho de José Wasth Rodrigues devo parte da inspiração que animou o registro desse modesto conjunto de lições e espero que esse intento mobilize outras almas inquietas a fazer o mesmo - e entre elas incluo, é claro, os mestres vivos do ofício.

Notas:

“Antônio Francisco [teria] adquirido conhecimentos teóricos, a par dos práticos, pelas vias que lhe eram acessíveis. Deve-se considerar que, a despeito da criação de “colégios” e universidades, às quais se acolhiam reduzidos grupos de alunos, a grande maioria dos profissionais, especialmente os relacionados com o artesanato e construções, formava-se, então, em “ateliers” privados e em canteiros de obras, sob a orientação das corporações de ofício que, criadas na Idade Média, sobreviveram no Renascimento e persistiram no período barroco.”

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